Estudo revela valor nutricional e cultural da carne silvestre para milhões na Amazônia

Pesquisa publicada na revista Nature mostra que sistemas alimentares tradicionais sustentam comunidades e dependem de floresta preservada.

Um estudo inédito publicado na revista científica Nature revelou a dimensão nutricional, econômica e cultural dos sistemas alimentares baseados em carne silvestre na Amazônia. A pesquisa reuniu dados coletados ao longo de quase seis décadas — de 1965 a 2024 — em mais de 600 comunidades de todo o bioma, apontando que a caça tradicional ainda é essencial para a sobrevivência e o bem-estar de 11 milhões de pessoas que vivem em áreas rurais da região.

Segundo o levantamento, a carne silvestre consumida na Amazônia fornece quase metade das necessidades diárias de proteína e ferro desses moradores, além de grande parte das vitaminas do complexo B e zinco, nutrientes que ajudam a prevenir anemia e outras deficiências comuns em populações rurais.

A diversidade registrada impressiona: pelo menos 500 espécies são consumidas pelos povos da região. No entanto, 20 grupos de animais respondem por 72% de todos os indivíduos caçados e 84% da biomassa total — entre eles, queixada, anta e paca, espécies fundamentais para a alimentação tradicional.

A pesquisa estima que, em toda a Amazônia, são extraídas anualmente mais de 500 mil toneladas de biomassa animal, resultando em cerca de 370 mil toneladas de carne comestível. Se fosse substituída por carne bovina, essa produção teria valor econômico aproximado de US$ 2,2 bilhões por ano.

Caça tradicional é guiada por regras e saberes antigos

O estudo destaca que a caça realizada por povos indígenas e comunidades tradicionais segue normas próprias, transmitidas por gerações, que regulam onde, quando e como caçar. Essas práticas moldaram um sistema sustentável ao longo dos séculos — e são justamente os territórios indígenas e tradicionais que hoje concentram as maiores populações de fauna preservada.

Para o pesquisador Hani El-Bizri, do Instituto Mamirauá e coautor do artigo, o trabalho só foi possível graças à parceria com as próprias comunidades.

“É o primeiro esforço em grande escala para mapear a caça na Amazônia. O estudo mostra como proteger culturas e territórios é essencial para manter a floresta em pé e garantir o uso sustentável da fauna”, afirmou.

Os autores alertam que propostas de proibir ou substituir a carne silvestre sem considerar esse contexto são visões colonialistas que ameaçam modos de vida e direitos desses povos.

Desmatamento ameaça sistemas alimentares amazônicos

A pesquisa também mostra que a perda de floresta interfere diretamente na disponibilidade de animais. Em áreas onde mais de 70% da cobertura foi destruída, a quantidade de fauna disponível para caçadores caiu 67%. Nesses locais, espécies menores e mais resistentes, como tatus e pombas, passam a dominar a caça — reflexo da degradação ambiental e da proximidade com centros urbanos.

Substituir a carne silvestre por proteína animal doméstica, como frango ou boi, teria impacto ambiental gigantesco. Segundo o estudo, seria necessário converter até 64 mil km² de floresta em pastos — área maior que a Letônia —, o que liberaria 1,16 bilhão de toneladas de CO₂, cerca de 3% das emissões globais anuais.

Além disso, carnes domésticas têm menor concentração de ferro e zinco, o que poderia agravar problemas nutricionais nas populações rurais.

Floresta em pé é segurança alimentar

Os pesquisadores concluem que proteger territórios indígenas e tradicionais é fundamental para manter a segurança alimentar, a saúde e os modos de vida das comunidades amazônicas. A demarcação e o fortalecimento da governança local são apontados como caminhos centrais para garantir práticas sustentáveis de manejo da fauna e cumprir metas globais de conservação.

O estudo contou com a participação de dezenas de pesquisadores indígenas, extrativistas e acadêmicos, e recebeu o apoio da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e do CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas), duas das principais representações da região.

 

 

Com Informações do Instituto Mamirauá

Por João Paulo Oliveira, da redação da Jovem Pan News Manaus