Quando pensamos em folclore brasileiro, provavelmente vêm à mente figuras como o Saci-Pererê ou a Iara, ambos amplamente conhecidos e difundidos. Mas existe toda uma constelação de narrativas tradicionais que fazem parte da identidade da Amazônia e de outras regiões do Brasil, e que merecem reconhecimento e valorização. Manifestações que envolvem animais míticos e seres sobrenaturais, como os bois de festa junina, a lenda do Curupira, da Matinta Pereira, da cobra-grande e outros mitos amazônicos, vão muito além do imaginário do “Sítio do Picapau Amarelo”.
O episódio da COP30 e o valor das tradições ribeirinhas
Durante a COP30, realizada em Belém, um momento cultural chamou a atenção, e, infelizmente, gerou reações negativas nas redes sociais. Muita gente comentou com “vergonha alheia” ao ver pessoas fantasiadas de animais da floresta sem saber que aquilo fazia parte de uma das manifestações mais simbólicas da cultura ribeirinha paraense: a Bicharada da Vila Juaba, tradição centenária de Cametá, as margens do Baixo rio Tocantins.
Nessa celebração, moradores se vestem como onças, macacos, cobras, pássaros e outros animais amazônicos para representar a força da natureza e a harmonia entre o homem e o meio ambiente. A “Bicharada” não é folclore inventado, é identidade viva, expressão autêntica do modo de vida das comunidades ribeirinhas. Antes de rir, é preciso conhecer. Antes de julgar, compreender.
Esse episódio evidencia um ponto essencial: o quanto o Brasil ainda precisa reconhecer e respeitar suas próprias raízes culturais, principalmente as que nascem longe dos grandes centros urbanos e carregam séculos de história e sabedoria popular.
Vai para além do que conhecem sobre “expressões de um povo”. Está no sentido de pertencimento do caboclo da região norte na história do Brasil.
Animais de folclore e festas regionais
Uma das manifestações mais conhecidas do folclore brasileiro é o Bumba Meu Boi, no Maranhão, reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A festa conta com história, música, dança e o personagem-animal “boi” como núcleo simbólico, revelando o elo entre mitos, resistência cultural e memória popular. É também chamada de “boi-bumbá” em estados da Amazônia, como o Amazonas, especialmente em Parintins, onde ocorre a tradicional disputa entre os bois Garantido e Caprichoso (bois vermelho e azul). O festival é reconhecido como o maior teatro a céu aberto do mundo, representando a rica diversidade cultural da região: os povos indígenas, o povo preto, os imigrantes e as comunidades ribeirinhas. Cada apresentação é uma celebração da Amazônia em forma de arte, música e tradição, resultando em um espetáculo único que ultrapassa fronteiras e emociona plateias do Brasil e do exterior.
Além disso, outras regiões do Brasil também cultivam versões próprias dessa ideia de “animal mítico” em festa, como o Boi de Mamão, em Santa Catarina, que adapta o tema à sua identidade regional.
Essas festividades demonstram que o uso de animais simbólicos, reais ou fantásticos, como heróis populares, figuras de luta ou de renovação, é um fenômeno cultural brasileiro muito mais amplo do que as versões mais midiáticas.
Lendas amazônicas: mistério, floresta e identidade
No contexto amazônico, a floresta é palco de mitos que misturam natureza, espiritualidade e ancestralidade. A figura do Curupira, por exemplo, é um guardião mítico da floresta, com pés virados para trás, que confunde caçadores e protege a mata.
Já a Matinta Pereira, mulher-bruxa que assombra o interior da floresta ou as margens dos rios, evidencia a riqueza narrativa da Amazônia, ligada aos saberes tradicionais, à oralidade indígena e às visagens noturnas.
Esses mitos são “outros Brasis”: não são meros folclores de segunda ordem, mas expressões vivas da cultura amazônica, que dialogam com a natureza, com o ribeirinho e com as memórias de povos originários. Quando reconhecemos que a lenda da cobra-grande, o boi Tata e outras versões regionais também fazem parte do nosso panorama cultural, ampliamos a visão do que significa “folclore brasileiro”.
Aqui, no meu primeiro artigo que publico. No diálogo realizado durante o programa “De Olho na Cidade”(do qual faço parte, diariamente, na Jovem Pan News Manaus), o professor Diogo Omar, referência em História pela UFAM, destacou que manifestações populares da Amazônia, como a disputa dos bois de Parintins e outras simbologias do imaginário regional, não podem ser analisadas sob a lógica fria da racionalidade moderna. Segundo ele, quem enxerga essas expressões como ultrapassadas demonstra desconhecimento sobre o papel que ocupam no sentimento de pertencimento das comunidades do Norte.
O professor relatou que, mesmo sendo mineiro de origem, encontrou na cultura amazônica um campo de afeto e identidade, citando a emoção que sentiu ao ver uma criança correr para debaixo do boi Caprichoso em Parintins.
Para Diogo, esse gesto revela que o “boi de pano”, assim como o peixe-boi, a Iara, o boto ou o curupira, ultrapassa o status de folclore: são elementos que estruturam uma cultura viva, dinâmica e essencial para compreender a Amazônia. Ele reforça que o país perde quando abandona seu encantamento e tenta reduzir o valor das tradições ao prisma econômico. Preservar essas narrativas, afirma, é tão estratégico quanto proteger o bioma, pois a floresta é também território simbólico, habitado por povos que constroem sua identidade a partir de suas histórias, lendas e afetos.
Confira o vídeo da entrevista no nosso canal do Youtube
Desafio para o Brasil continental
É preciso que o “outro Brasil” seja conhecido. Que o folclore amazônico saia das bordas da floresta e fique no centro das narrativas nacionais. Que mitos locais sejam estudados, ensinados e celebrados nas escolas, nos meios de comunicação e nas plataformas digitais.
Quando reconhecemos que a cobra-grande e figuras como o boi Tata são tão legítimas quanto o Saci ou a Iara, damos um passo importante para uma cultura mais inclusiva, mais rica e mais conectada à sua própria pluralidade.
Acrescento ainda que precisamos, mais do que nunca, aproximar o conhecer do pertencer e reconhecer um Brasil que insiste em se ver apenas por um único espelho inquebrantável, o do Sudeste, como se houvesse uma só identidade nacional. Esse modelo unificado apaga e sufoca as muitas vozes e expressões de um povo diverso, deixando à margem regiões inteiras que carregam histórias, saberes e modos de vida singulares e especiais.
Como bem disse o professor, “reduziram-nos ao exotismo da fauna e da flora”.
Esqueceram de olhar para a alma viva de um Brasil plural, que pulsa nas margens dos rios, nas florestas, nas cidades do Norte do Brasil e nas tradições milenares que insistem em resistir ao tempo e aos comentários infundados, preconceituosos, ignorantes e desnecessários.
Eu, Soul do Norte.
Por Tatiana Sobreira, da redação da Jovem Pan News Manaus, Coluna Soul do Norte.





